«A Capital do Império», de Modesto Navarro<font size=-1>(1)</fon>

Sérgio de Sousa

Sem cons­ci­ência po­lí­tica, Mário de­mora a ver um ca­minho para si

Ro­mance es­crito em Me­tan­gula, junto ao Lago Ni­assa, em 1966. Trans­por­tado pelo autor du­rante meio sé­culo, pu­bli­cado agora, Junho de 2017.

Nar­ra­tiva fo­cada num pro­ta­go­nista, Mário, e em per­so­na­gens com quem priva na sua es­tada em Lisboa, pro­ve­ni­ente da pro­víncia, para cum­prir o ser­viço mi­litar, no tempo da Guerra Co­lo­nial.

Após a In­tro­dução, o ro­mance es­tru­tura-se em duas Partes: a 1.ª, da edu­cação do pro­ta­go­nista, sa­bendo de casos pas­sados e fruindo ele pró­prio com di­versas mu­lheres; a 2.ª, cen­trada na sua re­lação com Marta.

O ro­mance vale pela des­crição de am­bi­entes da Lisboa do tempo, ca­pital sem pers­pec­tiva, cul­tura, con­forto; venal, ar­di­losa, de­gra­dante, que jus­ti­fica o des­fecho im­pre­visto.

P. 220:

«O outro: – Por que fa­laste só de Lisboa e não de África?

Mário: – Porque da guerra co­lo­nial todos fa­larão um dia como uma coisa cruel, per­dida à par­tida, des­ne­ces­sária. Mas pouco se fa­lará de Lisboa, do centro de tudo isto, onde se or­ga­niza e ma­ni­pula. Lisboa é a ca­pital do im­pério e da guerra. Da nossa so­lidão e do atraso. Do fas­cismo, da ig­no­rância e da ex­plo­ração. Da tris­teza e da morte es­pa­lhadas por todo o lado. Fa­lamos de Lisboa e es­tamos a falar de tudo o que nos oprime e mata. Ali é que co­meça a nossa morte. Um sol­dado morre duas vezes. Morre quando entra no quartel, para ser trans­for­mado em má­quina de guerra, quando o isolam e lhe cortam as raízes; e quando mata ou morre na guerra. Em Lisboa é que tudo co­meçou e, por lá, tudo co­me­çará a acabar. O país e o im­pério apo­drecem sem se­gredo para quem está atento

Mário apre­sen­tado como bom tipo, que se en­contra em Lisboa, no In­ten­dente, entre, p. 13, «[v]adios e pros­ti­tutas. Ma­ri­nheiros e sol­dados. Gente, muita gente», perde-se por ali «há dois anos, cum­prindo o ser­viço mi­litar e abrindo os olhos para a vida. Ou fe­chando-os?»

Como tantos, o amigo, Mar­celo, p. 118, «an­siava ser macho, ter imensas mu­lheres e tirar muitas fo­to­gra­fias agar­rado a elas, para mos­trar aos amigos quando fosse à terra.»

A ide­o­logia que in­cen­ti­vava os ho­mens a terem muitas mu­lheres, ati­rando estas para o so­fri­mento das tidas como res­pec­tivas con­sequên­cias.

A Mário, p. 68, «Lisboa en­leava-o. Dis­tri­buía-lhe no­va­mente o seu papel. O per­curso de querer saber porquê. Porquê ali es­tava. Porquê os ou­tros ali es­tavam também: fu­turas peças da má­quina de guerra em África. Peças da ci­dade. E a ci­dade rugia. Gri­tava. Abria-se e fe­chava-se. E os ho­mens eram en­go­lidos. De­pois eram peças. E nunca mais ho­mens. Pe­daços de porquês. Por que tenho fome? Por que estou só? Por que não sou eu? Porquê?... A so­lidão.»

 

Tomar uma opção

Na 2.ª Parte, cen­trada na re­lação entre Mário e Marta, ele vai par­ti­lhar a parte de casa dela, que con­ti­nuará na vida, só por uns tempos, até con­se­guirem uma casa deles...

Con­flito de Mário con­sigo, p. 143, «[a]gora era eu que me pros­ti­tuía».

Marta re­moía a te­oria do vício, p. 157: «...an­dava à caça porque o vício era maior do que ela (…) Não havia em­pregos, mas, mesmo que hou­vesse, muitas vol­ta­riam a cal­cor­rear as ruas, à pro­cura de ho­mens. Era o ópio delas, a ilusão de que eram pre­ten­didas e amadas. E (…) di­nheiro era uma coisa se­cun­dária: se os ho­mens iam com Marta é porque a ad­mi­ravam. Era esse o seu ra­ci­o­cínio. Era o seu en­gano.»

Com efeito, ela­bo­rava um erro, porque a pros­ti­tuição não se filia no vício, mas na mi­séria ma­te­rial, que co­arta a li­ber­dade e a dig­ni­dade.

De Lisboa Mário co­nheceu lo­cais de di­versão dos que aí iam nau­fra­gando, e no su­búrbio con­frontou-se com, p. 187, «aqueles a quem chamam o povo», a viver em, p. 186, «ca­sulos feitos de lata e tá­buas», numa, «po­breza or­ga­ni­zada», em que o di­nheiro não gasto na renda de casa servia para ad­quirir al­guma mo­bília, fri­go­rí­ficos, até te­le­visão co­lec­tiva.

Um dia, p. 174, «Mário soube que es­tava in­cluído numa leva de sol­dados que par­ti­riam em breve para Mo­çam­bique.»

O ro­mance finda com Mário a de­sa­pa­recer de Me­tan­gula; «es­co­lhera o lado em queria com­bater.»

Des­ter­rado do rincão natal, Mário busca um sen­tido da exis­tência na urbe grande. Fazer o quê, jun­ta­mente com quem? Só, acha os ar­rimos ób­vios: mu­lheres da vida.

Até os menos pre­pa­rados tra­ba­lham, são gente, e tentam ser fe­lizes; sem cons­ci­ência po­lí­tica, Mário de­mora a ver um ca­minho para si, mas cedo des­cobre para onde não quer ir, so­bre­tudo para onde não quer que o levem.

Re­trato da mancha recôn­dita e larvar da so­ci­e­dade, de­gra­dante, venal, na época em que a todos se ten­tava ofuscar com o falso brilho de alar­de­adas gló­rias pas­sadas; feias prá­ticas de ex­plo­ração, do­mínio, mor­ti­cínio.

Na ca­pital onde nas­ciam pré­dios e ave­nidas com di­nheiro vindo das Co­ló­nias, onde al­guns vi­viam bem, muitos so­ço­bravam na sub­sis­tência sem dig­ni­dade, e bas­tantes eram apres­tados para serem mu­ti­lados e di­zi­mados por balas, minas e gra­nadas, além do crime de dis­parar contra os que não eram ini­migos.

A Mário bastou o ide­a­lismo para tomar uma opção cor­recta.

Mo­desto Na­varro pôde pros­se­guir no largo ca­minho do re­a­lismo so­cial.
 

(1). - Nova Vega, 2017.




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